Igreja de Benguela

JUSTIÇA E PÃO PARA TODOS

Exortação Pastoral dos Bispos Católicos de Angola

(Plano de Pastoral 2002)

Amados irmãos, quase chegados ao fim do ano 2001 e querendo aplicar o Plano Trienal de Pastoral ao 2002, não podíamos deixar de dar continuidade à reflexão sobre Pobreza e Justiça Económica na África Austral, que foi o tema da Assembleia Plenária das Conferências Episcopais da África Austral ( IMBISA), em Harare, de 30 de Julho a 08 de Agosto. Aliás, já antes daquela reunião e no começo deste ano, tínhamos ouvido com muita atenção as perguntas desafiantes que o Santo Padre nos dirigiu, no termo do Ano Jubilar:

"Como ficar indiferentes... face aos problemas da paz, frequentemente ameaçada com o espectro de guerras catastróficas? Ou frente ao vilipêndio dos direitos humanos fundamentais de tantas pessoas, especialmente das crianças? Como é possível que ainda haja, no nosso tempo, quem morra de fome, quem esteja condenado ao analfabetismo, quem viva privado dos cuidados médicos mais elementares, quem não tenha onde abrigar-se?" (NMI, 51 e 50).

Desafios de hoje para toda a Igreja, diz o Papa, mas para nós, e nesta Angola, de modo ainda mais inquietante. Por isso é nossa intenção estar, como sempre estivemos, ao serviço da paz, ao serviço da justiça e dos pobres.

1. O DESAFIO DA PAZ

Desde que a Nação mergulhou nos horrores da guerra, a Igreja Católica em Angola nunca deixou de tomar uma posição clara e firme perante a guerra e a violência, pedindo aos beligerantes que apostem no diálogo, na reconciliação, na tolerância e na paz. Mostrámos assim que a nossa opção fundamental e irrenunciável era, e continua a ser, a de nos pormos ao serviço da paz sobretudo com a nossa voz profética, denunciando os gravíssimos males da guerra e apontando constantemente para os caminhos que podiam, e ainda podem, conduzir ao fim do conflito. Um destes caminhos é o diálogo, sobre o qual concorda com a Igreja Católica o Comité Inter-Eclesial para a Paz de Angola(COIEPA), bem como Partidos Políticos e Representantes da Sociedade Civil.

Graças a Deus, vislumbram-se sinais que se podem interpretar como início do diálogo para alcançar pelo menos o cessar fogo; mas, ao mesmo tempo, ainda se aposta no confronto armado e nos actos de violência. Escrevíamos em Mensagem Pastoral de 30 de Julho de 1997: " O Acordo de Lusaka projectou Angola para tempos novos, que todos começam já a saborear e a viver". Aconteceu, porém, que o não cumprimento do Acordo foi o regresso à guerra com todas as suas trágicas consequências.

Oxalá recomece quanto antes o diálogo para completar aquele Acordo, embora julguemos que não deveriam ser somente o Governo e Unita a sentar-se à mesa das conversações, mas também Representantes de outros Partidos Políticos e da Sociedade Civil. Seja como for, adiar indefinidamente a hora do diálogo, será o prolongar da guerra, uma das mais longas da história, e que ceifou um número incalculável de angolanos inocentes. Será aumentar ainda mais o número de deslocados, cuja situação é humanamente insustentável.

Mas, se como esperamos, reiniciar o diálogo que este seja desinteressado, objectivo e leal, e que exclua fingimentos, rivalidades ou traições, a fim de ser garantia segura de uma sincera reconciliação e de uma paz honesta e justa ( Cfr. Paulo VI, Ecclesiam Suam, n° 106).

Enfim, perante o tremendo desafio da guerra, reiteramos o apelo de Harare de Agosto passado: "Em nome de Deus pedimos aos beligerantes ( de Angola) que escutem os gritos do Povo, e cheguem, quanto antes, a um cessar fogo bilateral e simultâneo". Com efeito, a continuação da guerra é o perpetuar-se de muitas injustiças contra o nosso Povo e de dolorosas situações de pobreza. Não será, pois, possível erradicar a pobreza sem erradicar, de uma vez para sempre, a guerra.

2. O DESAFIO DA JUSTIÇA

Dizer Paz é dizer bem mais do que simples ausência de guerra; é postular uma condição de autêntico respeito da dignidade e dos direitos de cada ser humano, de tal modo que lhe consinta realizar-se plenamente" ( João Paulo II, Dia Mundial da Paz 1993).

Paz e justiça caminham juntas, de forma que "quando uma é ameaçada, vacilam as duas; quando se ofende a justiça, põe-se também em perigo a paz" (lbidem). Por isso, na medida com que se trabalha pela justiça, edifica-se a paz.

Convencidos disso, pareceu-nos oportuno, como dissemos, lançar o Plano de Pastoral 2002, sob o lema "JUSTIÇA E PÃO PARA TODOS". Justiça para todos, porque o homem não vive sozinho, isolado, mas em relação com os outros. Vive e trabalha lado a lado com os membros da sociedade de que é parte integrante, de tal forma que o bem do indivíduo e o bem da sociedade estão interligados. 'Por isso, a Igreja desde sempre proclamou, no seu ensino, o dever de agir segundo a justiça, educando os cidadãos a serem honestos e solidários uns com os outros, e pedindo, ao mesmo tempo, aos poderes públicos que promovam o bem comum, cuja realização é a sua própria razão de ser. De facto " a Comunidade Política existe em vista do Bem Comum: nele encontra a sua completa justificação e significado, e dele deriva o seu direito natural e próprio" ( GS n° 74).

O Bem Comum, portanto, não se promove com gestos e doações de aparente benevolência, mas com uma verdadeira transparência na administração e uma equitativa distribuição dos bens que são de todos.

A justiça é, pois, o fundamento de uma sociedade bem ordenada, livre e concorde, na qual cada cidadão é consciente dos seus direitos cumpridor dos seus deveres; por sua vez, o Estado deve garantir o equilíbrio entre uns e outros, promover o bem comum e instaurar condições de vida social que permitam aos indivíduos, às famílias e às diversas associações alcançarem o seu pleno desenvolvimento. Bem dizia S. Agostinho: " Uma comunidade de cidadãos não é senão uma multidão de pessoas unidas pelo vínculo da concórdia. O que os músicos chamam de harmonia é, num Estado, a concórdia: a concórdia cívica, porém, não pode existir sem a justiça!" (De Civitate Dei, 2,11).

" Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça" ( Mt 5, 1 0). Com estas palavras, o Senhor dá a entender que estabelecer a justiça neste mundo, marcado pelo pecado, pela avidez do lucro e do poder, nunca será fácil. Será sempre uma empresa sujeita à perseguição, isto é, ao confronto com as forças da injustiça e da opressão. Com efeito, há hoje como ontem, no presente como no passado, situações de injustiça que bradam ao céu. Foi sobre tais situações que se vivem na África Austral que, em Harare, os Bispos da Região reflectiram e escreveram com profunda tristeza: " Muitos dos nossos irmãos e irmãs vivem de pobreza e de fome. A violência, a guerra, o crime e a corrupção destroem as suas vidas... A decadência da moralidade, a crise da educação, a falta de emprego, e a falta de estabilidade política prometem-nos um futuro sombrio."

Sobre situações análogas, senão piores, que vivemos no nosso País, queremos reflectir ao longo do ano 2002, lançando o Plano de Pastoral "JUSTIÇA E PÃO PARA TODOS".

Falamos justamente de um Plano de Pastoral porque, além de fazer juntamente com as nossas Comunidades Cristãs uma análise social das situações que muito sacodem a nossa consciência humana e cristã, queremos projectar sobre elas a luz da Palavra de Deus, que nos julga a todos, a fim de encontrarmos caminhos de conversão e de transformação da sociedade segundo o desígnio de Deus.

Estaremos assim ao serviço da justiça, como é próprio de quem confia no poder da verdade, da verdade de valores radicados profundamente na consciência de cada homem, e na força do Evangelho que é fermento de liberdade e de justiça.

Para que o nosso serviço de Pastoral Social se torne mais eficaz e oportuno muito há de contribuir o estudo da Doutrina Social da Igreja, tesouro ainda escondido até para muitos dos nossos fiéis. Exortamos, pois, que neste ano todos nos apliquemos ao seu aprofundamento: Seminários, Escolas de Catequistas, Associações e Grupos de Apostolados dos Leigos.

3. O DESAFIO DA POBREZA

Deve-se afirmar que " situações de pobreza extrema, onde quer que apareçam, constituem a primeira injustiça" ( João Paulo II, Dia mundial da Paz, 1998).

Há índices de pobreza que são de modo manifesto índices de clamorosas injustiças. São os índices de condições de vida desumanas, verdadeiro desprezo da dignidade e dos direitos do homem. Se, por exemplo, alguém morre de fome, é vítima de uma gravíssima injustiça. De facto, o primeiro dos direitos é o direito à vida. Ora ninguém pode viver sem comer. Então sofre a mais grave das injustiças aquele meu irmão que está morrendo de fome. Coisa semelhante se deve afirmar da nudez, da falta dos mais elementares cuidados médicos, ou da falta de um tecto onde se abrigar...

Os índices de pobreza em Angola são bem conhecidos e até por dados oficiais. Somos um dos países do Mundo onde o povo vive mais pobre; com uma taxa de mortalidade infantil das mais altas, mesmo entre os países subdesenvolvidos; com uma esperança de vida abaixo dos 45 anos; com uma assistência médica e medicamentosa entre as mais deficientes ( Cfr. PNUD, Relatório do desenvolvimento humano em Angola, 1999).

Índices de pobreza, temo-los ainda no campo da educação e do emprego. No campo da educação, basta considerar a baixa taxa de escolarização, com grande número de analfabetos, particularmente entre as mulheres, bem como o baixo nível profissional e moral dos nossos professores. No campo do emprego, regista-se mais de 60% da força laboral desempregada no nosso País (Cfr. PNUD, ibidem).

Tais índices que revelam uma pobreza extrema desafiam-nos. Não podemos ficar insensíveis ou indiferentes, como membros que somos da mesma Família angolana; e sobretudo como cristãos, que pela fé descobrimos o rosto de Cristo no rosto do pobre, e bem assim o apelo de Cristo nas situações de pobreza que afligem tantos e tantos dos nossos irmãos e irmãs. Daí, o lema do Plano de Pastoral "PÃO PARA TODOS".

Pão, na Oração que Jesus nos ensinou, quer dizer o conjunto de todos os bens que o homem precisa para levar uma vida digna, bens que o Pai Celeste concede abundantemente e que seriam suficientes para todos os seus filhos, se não fosse o apetite desenfreado de alguns (indivíduos, grupos, entidades económicas e financeiras) a privarem muitos outros do "Pão nosso de cada dia". Pedimos o Pão Nosso e não meu, porque nos é dado pelo Pai para ser partilhado com todos. Realmente, esta petição ensinada por Jesus faz-nos lembrar as parábolas do pobre Lázaro e do Juízo final ( Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n° 2832).

4. PLANO DE PASTORAL

Com o Plano de Pastoral 2002 queremos, portanto, e em primeiro lugar, tornar mais viva a sensibilidade cristã das nossas Comunidades perante as necessidades dos irmãos que vivem em condições de vida degradantes. Esperamos dar assim uma resposta activa ao apelo do Papa feito no início do Novo Milénio: "É hora de uma nova 'fantasia da caridade' que se manifeste não só nem sobretudo na eficácia de socorros prestados, mas na capacidade de pensar a ser solidário com quem sofre, de tal modo que o gesto de ajuda seja sentido, não como esmola humilhante, mas como partilha fraterna" ( NMI, 50).

Afinal, é preciso "fazer-se ao largo" também alargando as dimensões da caridade, numa acção social que empenhe a todos na Igreja e de modo especial o nosso LAICADO CATOLICO, sendo sua a vocação e a missão de tornar presente o Reino de Deus, que é justiça e paz, nas estruturas da sociedade, trabalhando pela mudança.

Diante do desafio da guerra, da justiça e da pobreza em Angola, quem é que não vê, irmãos, que se impõe uma mudança? Se continuarmos a semear o ódio, a vingança e a intolerância política, quando teremos os Angolanos reconciliados? Se continuarmos a comprar armas e a espalhar o terror, quando poremos fim à violência e à guerra? Se é ainda com a guerra que queremos acabar com a guerra, quando teremos paz? Se continuarmos a pisar os direitos do homem, da mulher e da criança, quando teremos uma Angola verdadeiramente livre, justa e democrática? Se as nossa crianças continuarem sem escola, quando sairemos da nossa indigência? Se os nossos jovens continuarem a aprender a fazer tão somente a guerra e a manejar armas, quando poderemos ter um futuro de progresso social para todos, numa sociedade pacificada e fraterna?

. Sem dúvida, devemos trabalhar pela mudança, cabendo a nós como Igreja, e a partir das nossas Comunidades, estar ao serviço da paz, da justiça e dos pobres. Daremos, então, testemunho da 'Pobreza cristã' que Jesus proclamou 'Bem aventurada' e que consiste em ter um coração livre e disponível para partilhar o pouco ou muito que se tem com aqueles que não têm.

Encorajamos, pois, o trabalho da CARITAS que está desde sempre empenhada na Pastoral Social e que, de acordo com a visão cristã, também alertou a opinião pública angolana sobre o flagelo da SIDA entre nós. Encorajamos o MOVIMENTO PRO PACE, que entrou no seu terceiro ano de vida, como profeta da paz a nível da Nação e das Províncias, congratulando-nos sobremaneira com a preparação dos primeiros Conciliadores, mensageiros da reconciliação e da paz. Encorajamos as Comissões Diocesanas e Paroquiais de "Justiça e Paz" a empenharem-se cada vez mais na defesa da justiça, dos direitos humanos e da reconciliação. Encorajamos todas as Associações de jovens e adultos a serem fermento na massa, como pede o Sínodo Africano "especialmente no referente à ordenação das coisas temporais segundo Deus e à luta pela promoção da dignidade humana, da justiça e da paz" ( Cfr. N° 101).

Enfim, estando a celebrar as Bodas de Ouro da fundação da LEGIÃO DE MARIA em Angola, felicitamos os seus Membros pelo valioso trabalho apostólico que têm realizado nas nossas Dioceses e Missões, com admirável zelo e dedicação. Pedimos que perseverem no seu serviço legionário, animados pelo espírito de Maria "que sobressai entre os humildes e os pobres do Senhor" (LG, 55) e proclamou a obra d'Aquele que "derrubou os poderosos do seus tronos e exaltou os humildes; aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias" ( Lc 1,51-53).

No dia 11 de Novembro celebramos o dia da nossa Independência Nacional. Muito desejaríamos que esta data histórica fosse sempre celebrada por todos os Angolanos em toda a nossa Terra, num ambiente de verdadeira festa de Família, congregada na concórdia, na fraternidade e na paz.

Com este voto, que é de todo o nosso Povo, pedimos a Deus que por intercessão da Virgem Maria, Nossa Padroeira, abençoe a nossa Pátria e nos conceda "o fruto da justiça que será a tranquilidade e a segurança para sempre" ( Is 32, 16).

Luanda, aos 10 de Novembro de 2001.

 

 

Os Bispos Católicos de Angola

 

 


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ultima revisão deste pagina 21 de Novembro 2001