Reflexão teológica "a igreja como servidor, professor e profeta na crise actual de HIV/SIDA"
Muitos de nós em África sabemos hoje da extensão e intensidade da crise do HIV/SIDA. Como é que nós, enquanto Igreja, podemos responder efectivamente a essa crise? Padre Michael Kelly, S. J., professor na Universidade da Zâmbia, sugere três modelos que deveríamos seguir.
Esta é uma versão editada do documento originalmente publicado no Boletim de JCTR, número 44, Segundo trimestre, 2000.
A Igreja como Servidora
Quando Jesus terminou de lavar os pés aos seus discípulos durante a Última Ceia, Ele lhes deu uma recomendação fundamental: "Vós me chamais 'o Mestre' e 'o Senhor', e dizeis bem, porque o sou. Ora, se Eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós vos deveis lavar os pés uns aos outros. Na verdade, dei-vos o exemplo para que, assim como Eu fiz, vós façais também" (João 13, 13 - 15).A resposta da Igreja a este desafio do Senhor é a de ser servidora, para servir o povo de Deus nas suas necessidades. Na Zâmbia, as maiores necessidades do povo de Deus hoje são as que surgem das experiências vividas em consequência do HIV/SIDA. O povo está sofrendo dor, tristeza e perda de vidas humanas numa medida inimaginável. Está a enfrentar, e enfrenta duma maneira magnifica, um número de órfãos que, de longe, excede qualquer coisa antes vista na história humana.
No seu sofrimento, dignidade e paciência, o povo está mostrando que as suas alegrias e esperanças, as tristezas e ansiedades não são senão as mesmas dos seguidores de Cristo entre nós, hoje. A característica peculiar da resposta da Igreja, quando solicitada a enfrentar a epidemia de HIV/SIDA, é a de serviço. Este é, claro, um papel fundamental que ela compartilha com todas as outras Igrejas.
As muitas redes de cuidados caseiros, o cuidado e compaixão mostrados nos hospitais de missão, a dedicação sacrifício das Missionários da Caridade de Madre Teresa, o trabalho de muitos voluntários, a reacção, recentemente aclamada, coerente e bem organizada da Secretaria Católica diante da crise de órfãos, constituem, ao lado de muitas outras experiências, um testemunho eloquente desta prioridade.
Como uma manifestação desta resposta de serviço, o Directório Católico Zambiano de 1999 enumera trinta e quatro projectos de cuidados caseiros, urbanos e rurais, só na Arquidiocese de Lusaka, e mais doze na Diocese de Ndola.
Na nossa confusão e ansiedade para enfrentar os problemas que o HIV/SIDA traz, ficamos reconhecidos pelo modo como a Igreja e os seus membros se têm mostrado fiéis àquilo que o Senhor pediu de nós: que aprendessemos a fazer o que ele fez. E continuaremos a examinar como nas nossas vidas e nas nossas famílias, nas nossas pequenas Comunidades Cristãs e nas nossas paróquias, nas nossas comunidades religiosas e nas nossas organizações, nós podemos estender aquela resposta de serviço.
Neste momento, mais que em qualquer outro, vejamos como podemos ser o Cristo para os nossos irmãos e irmãs em sofrimento, para os órfãos que são crianças vulneráveis, para os avós que enfrentam mais uma vez o desafio de criar as crianças.
A Igreja como Mestra
O Senhor também enviou a sua igreja para ensinar: "Ide e fazei discípulos de todas as nações…. e ensina-lhes a observar todos os mandamentos que vos dei" (Mateus 28, 19–20).
O papel pedagógico inspira-se, em parte, no reconhecimento de como o próprio Senhor trabalhou com as pessoas. Ele não recusou associar-se com prostitutas e pecadores. Ele nunca os rejeitou, nunca os desprezou. Seguindo este exemplo, a Igreja quer que nós aceitemos a pessoa infectada com HIV, que nunca rejeitemos a pessoa que sofre de SIDA. Por causa da inspiração que ela tira da vida e prática do Senhor, a Igreja encoraja a ser abertos em relação a esta doença.
Reconhece também a fraqueza e a imperfeição de seus membros – clero, religiosos e leigos. Reconhece que eles também podem ser pessoas infectadas com HIV, mas sabe que isto é motivo para o serviço e a compaixão, nunca para a condenação. A Igreja também ensina que, embora o HIV/SIDA seja algo novo, não é castigo de Deus para o mundo por causa de seus maus comportamentos. Não é castigo de Deus para qualquer ser humano por causa da promiscuidade ou do pecado.
Em Deus está todo o melhor instinto de amor que há dentro de nós, aumentado até ao infinito. Deus é aquele que, como uma mãe que nos ensina a caminhar, nos segura nos seus braços e nos leva para perto da sua face; é aquele que pessoalmente entrou no nosso sofrimento pela morte de Jesus na cruz. Dessa forma, podemos saber que Deus compreende o sofrimento e a morte desde dentro.
A Igreja acha inconcebível que um tal Deus possa amaldiçoar qualquer pessoa atingida pelo HIV/SIDA. "Deus tanto amou o mundo que lhe deu o seu único Filho… não para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele " (João 3,16).
A preocupação de Deus pelo mundo é incomensurável, a sua intenção de salvação sem limites: na pessoa ridiculizada, desprezada, agonizante e quase desesperada de Jesus, Ele morreu na cruz.
Hoje, Deus ainda mostra aquele amor misterioso, profundo e poderoso, sofrendo numa pessoa que morre de SIDA, lamentando numa família que perde o seu amado, chorando num órfão que perde mãe ou pai.
A Igreja como Profeta e Líder
Na última Ceia, Jesus prometeu aos seus discípulos que lhes "enviaria outro Paráclito (defensor) para estar sempre com eles, o Espírito da verdade que o mundo não pode aceitar " (João 14, 17). Ele lhes prometeu que, como sua Igreja, eles entenderiam as coisas da forma que o mundo não entende, e que eles seriam fortalecidos para proclamar estes ideias sem medo. A Igreja sempre jogou este papel de liderança profética. Ela tem falado fortemente, sem medo. Tem indicado direcções novas. Resistiu aos opressores. Solidarizou-se com os fracos e impotentes. Guardou sempre no coração as palavras de Maria sobre "dispersar os orgulhosos, derrubar os poderosos dos seus tronos, elevar os humildes". A totalidade do ensino e acção da Igreja em favor do pobre é uma expressão da sua preocupação profunda pela justiça, por uma distribuição equitativa dos bens deste mundo, pela preservação da herança ecológica do mundo: fontes do mesmo carisma profético.
Ao mesmo tempo, a Igreja reconhece a sua debilidade e fraqueza. Reconhece que muitas vezes não falou de forma suficientemente corajosa. Dá-se conta que às vezes repetiu a fraqueza de Simão Pedro: transigiu, foi cautelosa e temerosa, esteve calada demais. Com o HIV/SIDA foi o mesmo que em outras áreas.
Um exemplo dramático disto aconteceu num país vizinho, quando os padres locais se recusaram a visitar uma mulher atingida por SIDA porque tinha sido uma prostituta. Quando o Bispo ouviu falar disto, ele mesmo passou a fazer regularmente visitas à mulher, até à sua morte, e celebrou a Missa do funeral com solenidade na Catedral.
Precisamos de mais líderes como aquele Bispo. Precisamos de mais gestos proféticos desse tipo. Precisamos que a Igreja passe a usar a sua poderosa influência moral e a sua liderança para quebrar, de uma vez por todas, o silêncio sufocante que cerca o HIV/SIDA. O silêncio conduz ao estigma e à discriminação. E os três juntos: silêncio, estigma e discriminação só servem para tornar mais fácil a transmissão da doença.
Infelizmente, a Igreja no seu aspecto oficial não esteve muito visível na Conferência Internacional sobre o SIDA que teve lugar em Julho 2000 em Durban. Igualmente, quase não esteve representada na Conferência do ICASA em Lusaka no ano passado. Uma vez mais, como Simão Pedro, esteve calada. Mas as pessoas estão olhando para a Igreja, esperando que ela fale, que ela exerça a liderança que lhe toca. As pessoas querem ouvir proclamar em voz alta e clara que os homens e mulheres que vivem com HIV/SIDA são filhos e filhas muito queridos de Deus, nossas irmãs e irmãos privilegiados que são chamados a realizar dentro de cinco a sete anos o que levará quarenta a cinquenta anos para os demais: combater o bom combate, terminar a corrida, realizar o potencial que Deus lhes confiou, "no mistério do amor que pode aguentar todas as feridas ".
As pessoas também querem ouvir a Igreja proclamar que há uma situação gravemente injusta hoje em dia, na qual alguns, alguns poucos, podem, literalmente, comprar a vida, enquanto milhões nunca serão capazes de suportar os custos extremamente elevados dos medicamentos e do tratamento que preserva a vida. Elas querem ouvir a Igreja dar voz às mulheres e ao direito de elas controlarem as suas próprias vidas sexuais, vendo isto como possivelmente a única maneira potente de reduzir a transmissão do HIV.
As pessoas querem ver a Igreja trabalhar sempre mais assiduamente para demolir todas essas barreiras que só encurralam situações nas quais o HIV/SIDA prospera e floresce: os muros entre o rico e o pobre, entre o norte e sul, entre os devedores e os credores, entre o doente e o saudável, entre a cidade e o campo, entre o instruído e o inculto.
Hoje, o corpo de Cristo tem SIDA, mas Cristo, que ressuscitou dos mortos, não voltará a morrer
O mundo quer que a Igreja trabalhe mais corajosamente para o dia em que toda as barreiras serão demolidas e "não haverá mais homem nem mulher, mais judeu nem grego, mas todos serão um só em Jesus Cristo" (cf Gal 3,28). Hoje, o corpo de Cristo tem SIDA. Mas o Cristo que ressuscitou dos mortos não voltará jamais a morrer. Esta fé inspira todos os crentes: um dia eles verão todo o membro do corpo de Cristo como uma imagem de Deus, livre de SIDA. Esta é a mensagem profética de esperança que toda a humanidade deseja ouvir da Igreja.
Traduzido em Português por Michael Buykx, Diocese de Benguela (Correcção de P.João Pedro Fernandes, cssr).
Compilado e distribuido por:
Programa contra o SIDA
Conselho de Diakonia de Igrejas
P.O.Box 61341
Bishopsgate 4008
South Africa
Telef (031) 305 6001
Fax (031) 305 2486
e-mail diak@iafrica.com
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Reconhecimentos:
Agradecemos aos teólogos que escreveram artigos para serem incluídos neste kit de recurso.
Os materiais foram recolhidos das seguintes publicações:
Men make a difference: World AIDS Campaign with men. Briefing document, UNAIDS.
HIV/AIDS Ministry: A Practical Guide for Pastors. Patricia Hoffman.
The Congregation: A Community of Care and Healing. Presbyterian Church, USA.
Sharing the Pain: a guide for caregivers. Fr. Bill Kirkpatrick.
JCTR Bulletin No. 44. Second Quarter, 2000
last update 22 de Novembro 2001
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